quinta-feira, 6 de junho de 2019


Minha vida sem ele



Tive cachorro minha vida toda. Cheguei a ter quatro de uma vez. Um deles meu filho mais velho se apaixonou e levou pra casa. Virou xodó. Teve outra que eu encontrei na rua, perambulando em péssimo estado. Pensei ser um cão velho e queria, por isso mesmo, ficar com ele. Queria dar-lhe amor, um fim de vida digno, cuidado. Tudo errado. Depois de uma ida ao veterinário, descobri que tratava-se de uma fêmea novinha. Cuidada e castrada, o pelo foi nascendo e tornou-se uma das cadelas mais lindas que conheci. É comum perguntarem de que raça ela é. Com muito orgulho respondo que é uma vira-lata. A terceira dessa prole que descrevo também foi adotada, numa semana santa, cidade vazia e ela sendo oferecida como um estorvo pela dona da pet. Coração vence a razão e carreguei, sem saber direito como fazer, como seria a interação, coisa e tal. Deu trabalho porque a danada tinha o gênio forte. Ao mesmo tempo era o ser mais chameguento que experimentei ter por perto... Sofri muito sua perda. Muito mesmo.

Mas é o quarto integrante desta matilha que me fez parar de frente ao notebook. Hoje, 06.06.19, ele se foi. A proximidade da morte me faz começar a prosa assim, pelo fim. Com ele muito presente ainda em meus pensamentos, encontrei uma forma de deixá-lo igualmente especial aos três demais. Ele foi o único que eu escolhi. Vi a mãe amamentando e um se destacava porque passava por cima de todos, naquele bolo de bebês. "É esse!". Nada de cachorro de raça, era viralatão mesmo (jamais compraria um cão). Três meses depois, após o desmame, aquele bebezão estava comigo. Era pra ser de porte médio, mas ficou imenso. Chegou a pesar mais de 30 quilos. E só não pesava mais porque as pernas eram quatro cambitos. Grandes, altas, mas uns cambitos.

Foi um cachorro valentão com estranhos e semiconhecidos. Partia pra cima. Muita gente levou suas mordidas, que continham mais o efeito de implicância, tipo um beliscãozão. Nessa, mordeu os rapazes da água (só ia no pneuzinho dos caras). Acho que era meio punk. Ele gostava do nhac no pneuzinho deles, porque estavam com os braços pra cima, carregando peso, incapacitados de revidar. Mas mordia quem vinha sem garrafa na cabeça também. Mordeu meu chefe mais querido, mordeu gente da família (só os marmanjos), mordeu meu namorado, mordeu foi gente. Tudo na base do nhac! Nunca machucou ninguém, por mais que se procurasse.

O corpo dele era enorme, mas a caixa craniana não era tão avantajada. Estou sofismando. Todo mundo sabe que ele era meio burrinho mesmo. Não entendia coisas óbvias que os outros cães do mundo sabem. Essa, digamos, limitação, nos fazia ralhar muito com ele, embora soubéssemos que ele faria de novo, e de novo, e de novo. Visita na minha casa queria saber antes onde ele estava, para depois dar um oi.

Escancarado seu lado punk-mordedor-meio burro, preciso falar da doçura. Como era doce meu gordo... Gostava tanto de um carinho que se esfregava até nas plantas. Passava horas circulando minha enorme palmeira, e dava umas estremecidas, como quem se arrepia com o carinho. Quantas vezes estava sentada na cadeira da varanda e ele vinha enfiando a cabeça na minha mão, pouco se importando se eu estava a fim ou não de ficar horas (ele era insaciável) alisando aquela pouca cuca. É... ele enchia nossas vidas e nós nem sabíamos.

Uma hora dessa, meu gordo deve estar sendo cremado. Vou derramar suas cinzas pelos caminhos que fazíamos por aqui pelo bairro. Sua morte já está assimilada, muito a contragosto. Vamos sentir saudade. Agora é torcer para que exista mesmo este céu para cachorros. Espero que ele se comporte por lá!