domingo, 31 de dezembro de 2023

A MORTE DE UM FILHO

 

Eu sei que o movimento parece contrário. Há uma desordem estabelecida porque uma regra foi quebrada. Crescemos acreditando que os filhos deverão sepultar os seus pais, mas o contrário não. É como se a vida de repente se perdesse dos trilhos, desviasse do caminho.

A Pietà é a expressão mais bela e mais aguda desta dor que não tem nome, a dor estranha, de um parto às avessas. Sepultar um filho é um jeito estranho de iniciar o sepultamento de si mesmo. Não há o que se negar.... Ver um filho ir embora de forma definitiva é ver partir um pedaço de sua essência. É como enfrentar o desatino do mundo, sem a mobilidade das pernas.

Nos olhos da mulher sobrevive um silêncio, capaz de comunicar mil palavras por minuto. Isso não tem nome. Dor que não tem jeito, dor que não tem remédio que faça parar de doer. O filho já nasceu, já viveu e já morreu.

A morte parece possuir o poder de paralisar o tempo, de estacionar as horas, os dias, os meses, os anos. O sofrimento que fica pode ser comparado a um grande baú, que não cabe em lugar nenhum da nossa casa.

Há uma inadequação entre o acontecimento e o nosso sentimento. O fato é cruel. Seu filho está morto. Mas dentro de você essa notícia não quer se acomodar. Seu filho está morto, mas a morte não combina com maternidade.

Eu vi a dor. Eu vi a cor da morte, eu vi a ruptura de perto. Eu vi dores diversas.

Só que é um fato inegável. Seu filho está morto e nós não temos como mudar este acontecimento. Não creio que alguém tenha que ir embora da nossa vida e que a sua partida seja em vão.

Organize o luto. É impossível superar uma dor como essa sem reconfigurar a vida, sem aquele que se foi. É fundamental que o espaço seja reorganizado, agora com essa ausência eterna.

Diante da perda nós temos duas possibilidades: ou reagimos para alcançarmos algum bem com aquilo que perdemos ou estendemos a perda no tempo e assim perderemos sempre, toda vez que lamentarmos aquilo que perdemos.

Mãe não precisa de terceiros para um contato com o filho que se foi. A autoridade afetiva maior já lhe foi dada. Não há estranho nesse mundo que faça falar seu filho mais que você. Você o conheceu, você o amou, você foi o primeiro colo que ele teve nesse mundo, você o viu dar os primeiros passos, levantou das primeiras quedas, ouviu falar as primeiras palavras...

Quem vai embora sempre esquece alguma coisa naqueles que ficam. Eu tenho certeza de que muitas vezes você olhou seu filho nos olhos e disse a ele que o amava. Porque ao professar estas palavras, seu filho continua no meio de nós. Nessa expressão, toda a sua luta se confirma. Seu filho não pode morrer em vão, ressuscite-o pela força de sua vida bem vivida, reerga o corpo cansado e deixe que a sepultura lhe sugira crescimento ao invés de derrota. Ao erguer os olhos para a vida, a não aceitar morrer também, disso contém a sabedoria: já que não temos o poder de ressuscitar os mortos, seguimos, então, ressuscitando os vivos.


Compilado de vídeo

Padre Fábio de Melo

sábado, 29 de abril de 2023

                     A população da China está caindo, sim,        

                  mas a população chinesa não!



Falando como uma curiosa, sem pretensão intelectualoide, acabei de saber que neste 30 de abril de 2023 a população da Índia ultrapassará a da China. É uma informação espantosa? Sim, é. Principalmente se considerarmos que a China é três vezes maior do que Índia, em território, embora muitos pontos sem condições de ocupação humana. Isso pouco importa. O que importa é que os Yang, Liu, Zhang, Wang, sei lá mais o que, estão diminuindo em sua terra ancestral. Sobre a Índia, posso tagarelar em outro momento. Hoje meu negócio é a China.
 
E é esse ponto que quero pensar e chamar para a conversa. A população da China está caindo, sim, mas a população chinesa não. Explico: num país de um comunismo autoritário, genocida, escravocrata, onde milhões e milhões vivem em porões, subsolos e até cavernas, as pessoas tendem a ligar o modo sobrevivência. O modo sobrevivência do chinês é fugir. Fugir da vergonha, da humilhação, da morte iminente.
 
Estive na Austrália, em Sydney, cidade bacana. Sabe quem povoa a Austrália? Os chineses! Ninguém pense que vai a Sydney e vai encontrar versões de Nicoles Kidman... Não! Lá é praticamente mezzo-mezzo: metade de olhinho puxado, metade loiro de olho azul. E não são turistas, são chineses que moram lá, que já fincaram raízes. E assim pode-se encontrar no resto do mundo, no oeste americano ou em países mais próximos à terra natal, mas onde a dignidade humana ao menos prevalece.
 
Na Austrália, por exemplo, pude observar muitos chineses ricos, vindos de lá já nessa condição. Os ricos, com a cabeça no lugar, capam o gato fácil. Os miseráveis, escapam como podem. A maioria morre tentando. A China equipara-se (falando-se aqui de chineses pensantes) a um presídio, onde o lugar dos que habitam só os faz ter um objetivo obsessivo: fugir! Escapar do inferno! Desaparecer no mundo! 
 
Ficam por lá pela China os velhos, os incapazes, os estagnados, os menos ágeis, os alienados. Afinal, quem quer viver na China, um país gestado por Mao-Tsé-Tung? E que ainda hoje seu fantasma impera? 
 
E que se aprocheguem todos. Corram! Fujam! Busquem o bem viver, busquem o seu valor, busquem a paz de espírito, que nem Buda tem dado conta. Aqui no Brasil eles abarcaram São Paulo. E há muito, quando cruzo com um chinês, faço um cumprimento discreto e respeitoso, como quem diz: bravo!

quinta-feira, 6 de junho de 2019


Minha vida sem ele



Tive cachorro minha vida toda. Cheguei a ter quatro de uma vez. Um deles meu filho mais velho se apaixonou e levou pra casa. Virou xodó. Teve outra que eu encontrei na rua, perambulando em péssimo estado. Pensei ser um cão velho e queria, por isso mesmo, ficar com ele. Queria dar-lhe amor, um fim de vida digno, cuidado. Tudo errado. Depois de uma ida ao veterinário, descobri que tratava-se de uma fêmea novinha. Cuidada e castrada, o pelo foi nascendo e tornou-se uma das cadelas mais lindas que conheci. É comum perguntarem de que raça ela é. Com muito orgulho respondo que é uma vira-lata. A terceira dessa prole que descrevo também foi adotada, numa semana santa, cidade vazia e ela sendo oferecida como um estorvo pela dona da pet. Coração vence a razão e carreguei, sem saber direito como fazer, como seria a interação, coisa e tal. Deu trabalho porque a danada tinha o gênio forte. Ao mesmo tempo era o ser mais chameguento que experimentei ter por perto... Sofri muito sua perda. Muito mesmo.

Mas é o quarto integrante desta matilha que me fez parar de frente ao notebook. Hoje, 06.06.19, ele se foi. A proximidade da morte me faz começar a prosa assim, pelo fim. Com ele muito presente ainda em meus pensamentos, encontrei uma forma de deixá-lo igualmente especial aos três demais. Ele foi o único que eu escolhi. Vi a mãe amamentando e um se destacava porque passava por cima de todos, naquele bolo de bebês. "É esse!". Nada de cachorro de raça, era viralatão mesmo (jamais compraria um cão). Três meses depois, após o desmame, aquele bebezão estava comigo. Era pra ser de porte médio, mas ficou imenso. Chegou a pesar mais de 30 quilos. E só não pesava mais porque as pernas eram quatro cambitos. Grandes, altas, mas uns cambitos.

Foi um cachorro valentão com estranhos e semiconhecidos. Partia pra cima. Muita gente levou suas mordidas, que continham mais o efeito de implicância, tipo um beliscãozão. Nessa, mordeu os rapazes da água (só ia no pneuzinho dos caras). Acho que era meio punk. Ele gostava do nhac no pneuzinho deles, porque estavam com os braços pra cima, carregando peso, incapacitados de revidar. Mas mordia quem vinha sem garrafa na cabeça também. Mordeu meu chefe mais querido, mordeu gente da família (só os marmanjos), mordeu meu namorado, mordeu foi gente. Tudo na base do nhac! Nunca machucou ninguém, por mais que se procurasse.

O corpo dele era enorme, mas a caixa craniana não era tão avantajada. Estou sofismando. Todo mundo sabe que ele era meio burrinho mesmo. Não entendia coisas óbvias que os outros cães do mundo sabem. Essa, digamos, limitação, nos fazia ralhar muito com ele, embora soubéssemos que ele faria de novo, e de novo, e de novo. Visita na minha casa queria saber antes onde ele estava, para depois dar um oi.

Escancarado seu lado punk-mordedor-meio burro, preciso falar da doçura. Como era doce meu gordo... Gostava tanto de um carinho que se esfregava até nas plantas. Passava horas circulando minha enorme palmeira, e dava umas estremecidas, como quem se arrepia com o carinho. Quantas vezes estava sentada na cadeira da varanda e ele vinha enfiando a cabeça na minha mão, pouco se importando se eu estava a fim ou não de ficar horas (ele era insaciável) alisando aquela pouca cuca. É... ele enchia nossas vidas e nós nem sabíamos.

Uma hora dessa, meu gordo deve estar sendo cremado. Vou derramar suas cinzas pelos caminhos que fazíamos por aqui pelo bairro. Sua morte já está assimilada, muito a contragosto. Vamos sentir saudade. Agora é torcer para que exista mesmo este céu para cachorros. Espero que ele se comporte por lá!

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Apóstrofo, este ladrão de caracteres

O Twitter trouxe com ele um erro de grafia muito disseminado (e portanto sério).  O nome dos festejados Trending Topics pediu logo uma abreviação por conta da escassez de caracteres a cada tuitada. O que era Trending Topics passou a ser TTs (note que a expressão em inglês está no plural). O problema é que o que era pra ser TTs virou TT’s.


Não consigo entender o que levou a grande massa da tuitosfera a enfiar este apóstrofo na tal sigla. Num lugar onde tudo é abreviado para economizar espaço, um apóstrofo desnecessário é quase um sacrilégio. Ainda mais estando errado. Mas o desordeiro apóstrofo, o ladrão de caracteres, está lá, dia após dia, descendo na minha timeline.

Tendo a imaginar que o Mc Donald’s tenha sua parcela de culpa. Afinal, é uma marca super pop que termina em e leva um apóstrofo antes. Será que sabem que, igualmente em inglês, apóstrofo não é para uso em plural? Teria sido esse o caminho para a indução ao erro? Mas voltemos ao português.

O que importa entender é que apóstrofo é supressão de letra e não plural. Usa-se em Itaporanga d’Ajuda, caixa d’água, pau d’alho, galinha d’angola. É raro, de uso especialíssimo. Há formas ainda menos usuais, como quando o pronome refere-se a seres divinos (d’Ele, n’Ele). Todas as demais formas, que ainda hoje são encontradas em algumas gramáticas, caíram em desuso.

Então ficamos combinados: o plural de TT é TTs, de CD é CDs, de DVD é DVDs, de PM é PMs, de TV é TVs, de FM é FMs e por aí vai... É só acrescentar o S minúsculo, mesmo sendo uma sigla de palavras estrangeiras. Português é simples. A gente é que complica.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Wagner Moura, seu lindo!



Wagner Moura tem a timidez encantadora de um primeiro namorado. O olhar e o sorriso arrancam de nós sentimentos bons, adolescentes. Sua voz grave, masculina, quase pede um abraço. Seu gestual discreto fica ainda mais irresistível quando sabemos que guarda um homem corajoso, politizado, combativo, engajado, de boa índole, sensível e inteligente. Não bastasse tudo isso, é o ator mais talentoso e um dos mais premiados deste país.

Impetuoso e de atitude, quando Arnaldo Bloch chamou Tropa de Elite de fascista, foi o primeiro a responder, num artigo bem fundamentado, que ganhou a primeira página de O Globo. Fez o país repensar o programa Pânico na TV, quando foi vítima do que ele definiu de “espetacularização da babaquice”. Também condena a revista Veja, à qual ele abertamente chama de conservadora, elitista, escrota, violenta e arrogante.

Wagner tem uma posição igualmente segura quando o assunto é religião. Diz que não acredita na Bíblia e que Deus somos nós, no domínio pleno de nosso potencial cerebral: “acredito no metafísico, nas coisas que a gente não enxerga com nossa visão limitada”. Está sempre nas causas ambientais e de direitos humanos.

Quando a gente pensa que ele já surpreendeu tudo, vem o Tributo à Legião Urbana. Que outra pessoa poderia subir num palco de tanta responsabilidade e mostrar que está ali para se divertir tanto quanto os oito mil presentes em cada uma das duas apresentações, na semana passada? Curtiu, reverenciou e desafinou, como todo o resto da multidão.

De olho no que há ainda a desbravar, move-se em direção a Hollywood. Depois de ter recusado vários papéis, vai ser o protagonista na biografia do cineasta Federico Fellini. Porta da frente e tapete vermelho em Los Angeles! Lá também vai fazer um vilão na ficção Elysium, ao lado de um elenco estelar. O namoradinho do Brasil ganhará o mundo, sem dúvida. Inspirado, genial, carismático, mas também modesto e cuidadoso com a glória, certamente saberá lidar com os novos elementos girando à sua volta. 



sexta-feira, 20 de abril de 2012

Sócrates, o precursor de Jesus


Você sabia que Jesus Cristo era um seguidor da filosofia socrática? Pois sim, há grande abundância de Sócrates no filho de Deus. Apenas 400 anos separam um do outro e considerando o quanto um permanece tão vivo até hoje e outro foi negligenciado pela humanidade, me pergunto por que, pra muita gente, Sócrates pouco passou do filósofo grego autor da sentença “Só sei que nada sei”.
Louva-se Jesus porque questionava as velhas crenças e não aceitava algo pela autoridade, pela obviedade, pelo senso comum. Quatro séculos antes, Sócrates já fazia isso, e muito bem feito. Todas as suas biografias revelam o quanto renegava a verdade genérica, o argumento banal. Não queria as respostas padronizadas, tradicionais. Durante 50 anos, criticou e atacou publicamente as tradições da vida e tinha um grupo de jovens seguidores (entre eles, Platão). Queria formar seres pensantes, sem pedir nada em troca. Sequer gostava de dizer que tinha seguidores.
Outro dado instigante sobre ele é que não deixou escritos, já que o conhecimento, no seu entender, não é uma obra fechada, concluída. Conhecimentos, sensações, compreensões, percepções, uma vez retidos, imediatamente se limitam, perdem valor. A memória, na filosofia socrática, não comporta o saber. Sabia que o saber é não saber.
Andava descalço, com uma túnica encardida, pouco se banhava e tudo isso era incomum para uma pessoa de sua casta intelectual. Jesus foi espírito. Sócrates foi corpo e alma alheios às convenções. Era desengonçado, tinha a cabeça grande, olhos grandes, era um homem feio, o que também, entre os gregos, era incomum. Outro grande talento era o bom humor, uma quase ironia, beirando o sarcasmo,  próprio dos muito inteligentes. No episódio de sua morte, seus seguidores lamentavam que ele morresse  inocente. E ele lhes respondeu: “Por que? Prefeririam que eu morresse culpado?”.
Na época em que viveu (469aC-399aC), o comum filosofal era interrogar sobre o Universo, a Terra, a Lua, o Sol, de que eram feitos ou quem os fez. Era uma época em que afloravam a ciência, o estudo da astronomia, da matemática e da física. Mas ele não se interessava por nada disso. Só queria saber de gente e do pensamento dessa gente.
A enorme riqueza de sua vida abrange matrizes não só da filosofia, mas também da psicanálise, da religião, da política, da cultura, do mundo das leis, da pedagogia, das relações públicas, da composição social. Enfim, Sócrates pode estar onde quisermos colocá-lo.
Sócrates foi o primeiro gênio a pôr o ser humano no centro da existência: -“Quem sou eu?”, “Por que sou o que sou?”, “Por que sei o que sei?”, eram perguntas que lhe fervilhavam a mente. Trocava ideia com poetas, artesãos, políticos, gente do povo, qualquer um. Perguntava-lhes sobre piedade, amor, justiça, ética, moral. Suas conversas começavam em tom de curiosidade e terminavam provocativas, confrontadoras. Foi extremamente hábil em explorar as contradições humanas. Era uma pessoa muito cativante, mas desestruturava os pretensiosos.
Assim como viveu, morreu pela liberdade do pensar, cumprindo sentença da tal justiça humana. Nos deixou o ensinamento de nunca nos conformarmos com o que já existe como única forma do possível. Ao contrário: é preciso filosofar. Depois da morte de Sócrates, Atenas converteu-se numa cidade intelectual, um paraíso do estudo e da discussão, dos alunos de Sócrates e dos alunos de seus alunos...
Platão, Aristóteles e tantos outros passaram a construir lentamente um mundo embasado numa razão especial e pouco a pouco as ideias destes gregos começaram a se alastrar pelo mundo. Foi graças a Sócrates, pois, que o mundo virou o império do questionamento e de uma infindável busca existencial. E um dos inúmeros méritos de Jesus foi, portanto, inspirar-se nesta fonte límpida, rica, extraordinária.